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Região: Os voluntários da Revolução de 1932

ARQUIVO DA ALESP

Flávia Lima
Especial para o Tribuna

Filho de escrava, Clito de Souza Lima era alfaiate em Be­bedouro (SP), em 1932. Da te­soura dele vinha a única fonte de renda da família, formada pela mulher e dois filhos pequenos. Por que ele teria se voluntaria­do pra lutar nas trincheiras de uma guerra civil que servia ao patriarcado paulista?

Clito de Souza Lima, um negro alto, bonito e honrado, era meu avô. Tinha cerca de 30 anos, era respeitado e que­rido dos “doutores” brancos da cidade, pelos ternos bem cortados e a dignidade que sua figura inspirava. No dia 9 de julho daquele ano, quando saiu de casa pra lutar “em defesa da Constituição”, meu pai tinha 3 anos e a irmã dele, 5.

Menos de três meses de­pois, no dia 2 de outubro, a Revolução Constitucionalista de 1932 teve fim, com a derro­ta dos paulistas. Mas meu avô não voltou pra casa, deixando a família numa situação dificí­lima, como se imagina. Muitos meses se passaram, não sabe­mos ao certo quantos, mas o primeiro semestre de 1933 já estava em curso, quando, num fim de tarde, minha avó, sen­tada em frente à casa que eu conheci bem, recolheu apres­sada as crianças, temendo a fi­gura magérrima e esfarrapada que dobrou a esquina.

Vestida de negro, conside­rada viúva, com missa e no­vena já rezadas pelo marido supostamente morto na “re­volução”, vó Leontina levou um susto ainda maior quanto viu que o tal mendigão era o vô Clito, voltando a pé da fa­tídica revolução, sem recurso nenhum. Sim, pois a revolução acabou e o interesse do gover­no paulista pelos soldados vo­luntários, também.

Nunca ouvi história seme­lhante nos livros de história, mas certamente por ignorân­cia minha. O historiador Jú­lio Chiavenato, por exemplo, sabia disso e me contou que o mesmo se deu com vários ho­mens, inclusive seu avô. Mas ele era branco e, portanto, vol­tou em situação melhor e bem mais rápido, semanas depois, provavelmente angariando simpatia pelo caminho, além de caronas, água, comida, pou­so e palavras de louvor.

Mais de 600 quilômetros separavam os “soldados cons­titucionalistas” que pelejavam na região do Vale do Paraíba, no momento da rendição, até a casa de nossos avós, na re­gião de Ribeirão Preto.

Como tudo começou
Júlio Chiavenato também contou que a “Revolução de 32” teve sua origem dois anos antes, com o golpe de Estado que colocou Getúlio Vargas no poder. Assim que assumiu, ele anulou a Constituição e fe­chou o Congresso Nacional, as assembleias legislativas e as câmaras municipais.

No entanto, Getúlio prome­tia substituir a Constituição por outra, que garantisse poderes mais amplos aos pobres: direitos trabalhistas, quase inexistentes, e o direito universal ao voto (luxo reservado a quem fosse homem, branco e rico), embora um voto popular valesse pouco, pois, na prática, vinha da oligarquia a de­cisão de quem iria governar.

De fato, o presidente já ha­via colocado tais mudanças em curso, em 1932, quando São Paulo se lançou, sozinho, con­tra o governo federal. Em fe­vereiro daquele ano, Getúlio já tinha convocado uma assem­bleia nacional constituinte para escrever a nova Constituição, e havia nomeado um interven­tor paulista – as duas grandes exigências de São Paulo. Mas a insatisfação com o governo ti­nha motivos vários e o clima de revolta crescia.

A Grande Depressão

As mudanças prometidas por Getúlio eram uma resposta a uma série de fatos econômicos e sociais, inclusive a necessida­de de conter a imensa massa de desempregados e trabalhadores insatisfeitos, que aumentava a cada dia, gerando subutilização da mão de obra, desespero e protestos.

Afinal, o Brasil vivia sua pior crise, a chamada Grande De­pressão de 1929, quando a bolsa de Nova Iorque quebrou, derru­bando o preço do café. O Brasil, que no início do século havia se tornado o principal exportador de café do mundo e vivia uma transição do rural para o urba­no, foi um dos mais afetados. Sofrimento para os pobres e preocupação para a elite, sobre­tudo paulista, que concentrava a produção de café do país e, tra­dicionalmente, repreendia com mais rigor os movimentos traba­lhistas, como as greves de 1917, contidas com mortes e prisões.

Por que, então, humildes chefes de família deixaram o lar à própria sorte para defender os interesses dessa oligarquia? E como outra grande parte da população decidiu doar todo o seu ouro – alianças, escapulários, relógios e o que mais possuía – para financiar esta guerra? O motivo é o mesmo que ainda hoje demove as multidões: pro­paganda eficiente. Os progra­mas de rádio da época e os car­tazes que aqui se vê (um tipo de rede Globo do momento), dão boas pistas do clima criado.

Um breve contexto histórico

Na chamada República Velha (1889-1930), as eleições eram fraudadas; os estados fa­ziam pactos para decidir qual presidente venceria as eleições, independentemente dos resulta­dos das urnas. Havia uma alian­ça dominante, conhecida como “política do café com leite”, entre São Paulo e Minas Gerais, que se alternavam na presidência. Mas em 1930, o então presidente Washington Luís, representan­te dos paulistas, traiu a vez dos mineiros, ao indicar para seu su­cessor o então governador pau­lista Júlio Prestes. Com isso, as oligarquias mineiras passaram a articular um golpe de Estado contra Júlio Prestes, junto com o Rio Grande do Sul e a Paraíba.

Assim, Getúlio Vargas tor­nou-se presidente e, em São Paulo, vários grupos da oligar­quia se formaram, alguns contra e outros a favor dele. No dia 23 de maio, uma das muitas brigas de rua protagonizadas por gru­pos rivais resultou na morte de quatro jovens, dando origem à sigla MMDC (as iniciais deles: Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo). Mais tarde, adicio­nou-se a letra A, de Alvarenga, ao final da sigla, sobrenome de outro jovem, que morreu dias depois, por conta do conflito.

Essas mortes foram o es­topim para a Revolução Cons­titucionalista de 1932 (que, por sua vez, deu origem a muitos mortos – 934, segundo o go­verno, e 2.200, segundo o exér­cito paulista). Usando os meios de comunicação de massa, o movimento ganhou apoio po­pular e mobilizou cerca de 40 mil homens, que marcharam de vários pontos do Estado rumo à sede do Governo Fe­deral, no Rio de Janeiro, com a intenção de depor Getúlio.

Havia uma expectativa de que outros estados se juntas­sem ao movimento (Minas Gerais, Rio Grande do Sul e o então Mato Grosso), mas os paulistas acabaram por com­bater, sozinhos, contra mais de 100 mil soldados federais. Mui­tos historiadores afirmam que a desistência dos estados alia­dos se deu, principalmente, por conta de uma campanha difa­matória do Governo Federal, que afirmava que a real inten­ção dos paulistas era se separar do restante do país, informação jamais comprovada.

ARQUIVO DA ALESP

Morro, mas São Paulo vence

Foram muito os municípios paulistas a sofrer bombardeios. E, em várias frentes de comba­te, sobretudo nas regiões mais acidentadas, como a Serra da Mantiqueira, os massacres fo­ram sangrentos e cruéis. Em Cunha (SP), quando as tropas federais torturaram e mata­ram o agricultor Paulo Virgílio, obrigado a cavar a própria se­pultura por se recusar a entre­gar a localização dos paulistas, a última frase dele ficou famosa: “Morro, mas São Paulo vence”.

Outros casos de heroica resistência foram registrados em vários municípios. Em Queluz (SP), ao ouvir a ordem de rendição dos adversários, o capitão do Exército Constitu­cionalista Manuel de Freitas Novaes Neto gritou, antes de ser assassinado, “Um paulista morre, mas não se rende!”

Apesar da derrota em campo, a Revolução Constitu­cionalista foi considerada vi­toriosa por muitos, pois Getú­lio convocou eleições, no ano seguinte, para uma assembleia constituinte, promulgando uma nova Constituição, em 1934. Mas ela durou pouco: em 1937, o próprio Getúlio voltou a fechar o Congresso e a revogar a Constituição, dan­do início ao “Estado Novo” até 1945, quando foi deposto por antigos aliados generais.

Os corpos negros e o racismo: o que mudou

Refletir sobre como o racismo, sobretudo contra o povo negro, é paralisante. Mesmo quando conse­guimos a difícil tarefa de superar as mágoas e a baixa autoestima que a discriminação racial (quase sempre) velada produz, ainda assim, o preconceito e a discri­minação são impeditivos.

Impedem um negro de obter carona depois da guerra; o impedem, quase sempre, de chegar à facul­dade, de conseguir bons trabalhos e realizar sonhos fáceis para um branco. E o que mudou de 1932 para cá, além da hipocrisia, que se avolumou?

Quem se compadece de um preto voltando da guerra? Quem se importa com as centenas de corpos negros de refugiados boiando nas praias, que jamais viralizam nas redes sociais, como ocorre sempre que um corpo é branco?

Voto feminino e a pressão dos trabalhadores à época

Segundo a Constituição de 1891, extinta em 1930, o voto feminino não era vedado. A legislação previa, genericamente, que poderiam ser eleitores todo os cidadãos maiores de 21 anos alfabetiza­dos (o que restringia o voto à elite, graças ao alto índice de analfabetismo entre os pobres de então). A lei, portanto, não proibia especificamente a participação da mulher no processo eleitoral, mas tal fato era tão impensado e improvável que as mulheres jamais votavam.

Foi um grande alvoroço quando, na década de 1910, mulheres do Rio Grande do Norte resolveram votar e se candidatar, baseando-se nessa lacuna. Já na década de 1930, com a população crescen­do consideravelmente, se multiplicaram os casos de mulheres reivindicando participação na política, da mesma forma que aumentou o clamor popular por direitos trabalhistas.

Para viabilizar um golpe de Estado, é preciso uma receita simples: desemprego e recessão altos. De um lado, trabalhadores revoltados ou desesperançados (manifestações e protestos, por parte da pequena massa crítica, e desalento e desinteresse entre a maior parte da população). De outro, a repressão da oligarquia para conter as pressões populares. Era esse clima no Brasil de 1930, quando, após uma série de conflitos pelo país, tropas militares invadiram a sede do Governo Federal, na época no Rio de Janeiro, e tomaram o poder para Getúlio.

Como em todos os períodos de exceção que antecedem um golpe (quando as regras começam a ser quebradas e a lei é usada apenas contra os mais fracos), a repressão cresceu à medida que a organiza­ção popular aumentou. Assim surgiram os golpes de 1930, de 1937, de 1964 e de 2006, para não mencio­nar os ocorridos antes e com o advento da República.

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