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19 de março de 2024 | 7:32
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Juiz, como fermento de esperança

A morte ceifou mais um homem extraordinário, na simplicidade, no saber de autodidata, que lera os clássicos antes dos dezesseis anos, chegando com essa densidade de cultura à Faculdade de Direito de Belo Horizonte, hoje Universidade Federal de Minas Gerais. Mas, antes, ele estudou no Colégio do Estado de Ribei­rão Preto, famoso à época, e escrevia no jornal local A Cidade.

Fez muitas amizades em Ribeirão Preto e sempre destacava a lembrança do jorna­lista Luciano Lepera, marxista, deputado estadual cassado, antes do golpe de 1964.

Ouvi falar dele como juiz de direito da cidade paulista de José Bonifácio, lá em meados da década de 1950. Comentava-se o orador que ele era. Declamava “Navio Negreiro”, de Castro Alves. E tinha uma mancha na testa, tão incomum quanto sua sensibilidade, sua inteligência, sua cultura humanista, seu caráter reto e limpo. Sentava nos bares, conversava com as pessoas simples como um deles.

Como juiz era mesmo fora do padrão. Longe de qualquer formalismo, naquela época em que o juiz era figura central da cidade. Basta se lembrar de que faculdades de direito eram pouquíssimas, e ninguém imaginaria que o Brasil teria, um dia, mais de mil e cem escolas de direito.

Seu período de magistrado, na cidade de Rio Claro, levou-o a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, inicialmente com ouvinte, depois seu professor, duran­te alguns anos. Foi também professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).

O brilhante advogado, procurador do Estado, Wadih Aidar Tuma, contou a impressão causada na Vara da Família pela atuação daquele juiz, que gostava de conversar com o casal, dando a impressão equivocada, no início, de que “ele não gostasse de trabalhar”. Nada disso. Era o diálogo da redescoberta do casal, que lhe dava, certamente, um sentimento de realização de justiça, quando os reconciliava. Chegavam ansiosos, quiçá indignados consigo e com o outro, para disputar com a calma, leveza e sensibilidade do juiz franzino, que tinha aquele mancha visível e forte na testa, a voz mansa, a palavra insinuante de respeito e afeto pelo núcleo familiar ameaçado.

Como juiz foi presidente do Tribunal de Alçada Criminal, “onde mais que administrar a Corte batalhou pelos direitos dos réus desassistidos, asseguran­do que o Estado patrocinasse sua defesa em caso de omissão de advogados, na interposição dos embargos infringentes, sempre que havia recurso de apelações, voto vencido em favor dos réus” (Quase noventa anos – Homenagem a Ranulfo de Melo Freire, editora Saraiva, 2013-texto extraído da coordenação da obra).
Ele nasceu na cidade mineira de Ventania, que depois se chamou e chama Alpinó­polis, no dia 4 de abril de 1924. Morre aos 93 anos. Seu inspirado humanismo formado, como autodidata, era sempre uma luz penetrando o intimo das pessoas e do tempo.

É um dos fundadores do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Crimi­nais, juntamente com seu colega de Tribunal Alberto Silva Franco e outros, que, em 2013, festejaram solenemente o aniversário de Ranulfo, até com a publicação de um livro. O IBCCRIM se converteu em fonte de irradiação da moderna ciência do direito penal, atento às mutações, e particularmente vigilante para qualquer ato político ou governamental violador dos direitos fundamentais do cidadão e da arquitetura da democracia.

Esteve presente em colegiados de defensa dos direitos humanos. E, quando as­sessor na Secretaria da Justiça de José Carlos Dias, representou-a na elaboração do primeiro convênio com a Ordem dos Advogados, para pagamento dos advogados da assistência judiciária, tendo ao seu lado o procurador Vitor Hugo Albernaz, representando a Procuradoria Geral do Estado.

Ele também assinou, como Presidente da Fundação Manoel Pedro Pimentel, em sessão solene realizado no dia 8 de dezembro de 1999, Dia da Justiça, o Proto­colo celebrado com a Universidade de Sorocaba, no programa denominado Celso Ibson de Syllos, cujo objeto era o das universidades assumirem as penitenciárias como departamento interdisciplinar.

Ranulfo de Melo Freire, silencioso, homem de corpo franzino, fala mansa, era um gigante de alma e de espírito, sempre presente nas lutas democráticas de seu tempo.

Sua dignidade fermenta a esperança no mundo.

Assim não foi Ranulfo. Ele é.

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