Tribuna Ribeirão
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A arte de não ler 

Antonio Carlos A. Gama *
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Shopenhauer falou sobre a arte de não ler:

“No que se refere às nossas leituras, a arte de não ler é muito importante. Essa arte consiste em nem sequer folhear o que ocupa o grande público. Para ler o bom, uma condição é não ler o ruim, porque a vida é curta, e o tempo e a energia escassos. Muitos eruditos leram até ficar estúpidos.”

Há aí conselhos e conceitos perfeitamente certos, e outros nem tanto.

Ninguém negará que não é bom misturar alhos com bugalhos, em nossas leituras, e que devemos ler os livros realmente bons, ou somente os excelentes, e desprezar aqueles que não prestam.

Mas, nem sempre o grande público só lê os livros ruins. Também é exato que a vida é curta, e nosso tempo e nossa energia se esgotam.

Já os eruditos não se tornaram estúpidos porque leram muito, senão porque tresleram e fizeram da leitura uma finalidade em si mesma.

E como se sabe que um livro não presta, senão depois de ler-lhe algumas páginas? “Não li e não gostei”, dizem os enfadados de certos autores e de certos livros que acabam de ser publicados.

Depois de ler alguns pedaços desses livros, então é que sabemos que o autor é irremediavelmente um idiota, e podemos daí para frente afastá-lo de nós, e dizer dos sucessivos livros que vai publicando: “Não os li, e não gostei.”

De qualquer modo, para se saber que um livro é bom, é preciso ter um padrão do que é bom, ou ótimo, e este padrão se estabelece através da comparação com os livros mal pensados, mal escritos e que não dizem nada que valha a pena.

Se todas as mulheres fossem feias, ou belas, não haveria mulher feia, nem bela. Eis um lugar comum de pedregulho.

Além disso, um livro que nos pareceu bom, à sua leitura de quarenta anos atrás, volvido esse tempo, e lidos outros muitos livros e excelentes, é que saberemos que ele não valia nada. 

O leitor, como os livros, amadurece. E só amadurecem e se refinam os livros exemplares, enquanto os demais apodrecem.

Há também um leitor de natural bom gosto, e outro não, como as mulheres que se vestem bem, e outras que nunca aprendem a vestir-se elegantemente. 

Há ainda livros irregulares, com páginas brilhantes, e outras detestáveis. O seu autor não teve equilíbrio, perdeu-se, não o soube planejar, não se conteve, é dispersivo, pretendeu dizer tudo, para não dizer quase nada. São livros falhados.

Será conveniente também dar algum crédito a autores que publicaram livros medíocres; pode ser que, com o passar dos anos, esses escritores melhorem, adquiram a técnica e a arte de escrever, aprendam a escolher a matéria que mais lhes toque de perto, e afinal concebam e escrevam um bom livro.

Se os leitores se apuram com os anos de leitura, por que também não eles? Ninguém nasce perfeito e armado, da cabeça de Júpiter.

Há também um leitor para cada assunto e para cada autor. Ou melhor: assuntos que nos foram preciosos numa época, já não o são mais tarde, e outros lhes sucedem que nos atraem. O leitor de ficção transmuda-se em leitor de memórias, ensaios; o de prosa chega aos poemas; o de história atinge a filosofia.

Sim, há uma arte de não ler, como há uma arte de ler. A arte de ler implica também fechar o livro, e meditar sobre ele. Distanciar-se do livro, para mais bem o ver. Muito perto dele, não o vemos perfeitamente. Convivendo muito tempo com ele, já suportamos os seus defeitos, numa familiaridade comprometida.

A preferência pelos autores e livros antigos, modelares, nos fecha os olhos para a contemporaneidade, em que nem tudo é mau, ou péssimo.

Os homens ainda são os mesmos, e de vez em quando nasce um talento que deve ser reconhecido.

Não se deve ter juízos e julgamentos definitivos. E se a cara do autor, na orelha do livro, nos é antipática, ainda assim pode ser que ele seja um bom homem.

Um livro não deve ser sacrificado por um crítico feroz e truculento. Nem pelo silêncio indiferente dos outros. Às vezes ele está acima da política literária dos grupelhos. E o seu louvor excessivo, não raro, é má recomendação.

A arte de não ler é tão difícil como a arte de ler.

* Promotor de Justiça aposentado, advogado, professor de Direito e escritor 

 

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