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Direito na China: entre a tradição e a modernidade

Rodrigo Gasparini Franco *
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O sistema jurídico chinês, marcado por uma profunda ligação com a história, a cultura e a filosofia do país, apresenta uma estrutura singular que mescla tradições milenares com influências contemporâneas. Para compreender a complexidade desse sistema, é fundamental analisar dois conceitos centrais: “fa lu” e “fazhi”. Embora ambos estejam relacionados ao universo do direito, cada um possui significado próprio e funções complementares na construção do Estado de Direito na China.

O termo “fa lu” refere-se ao direito positivado, ou seja, ao conjunto de leis escritas e codificadas que regulam a conduta de indivíduos e instituições, assegurando a ordem social. Suas origens remontam à dinastia Qin, entre 221 e 206 a.C., período em que o legalismo, conhecido como “fajia”, consolidou-se como filosofia dominante. Para os legalistas, a lei era vista como instrumento fundamental para garantir a estabilidade e o controle do Estado, sobrepondo-se a valores morais ou éticos.

Atualmente, “fa lu” representa o arcabouço jurídico formal da China, englobando a Constituição, os códigos civil, penal e administrativo. Esse conjunto normativo orienta tanto as ações do governo quanto as dos cidadãos, promovendo previsibilidade e uniformidade nas relações sociais. No entanto, a existência de leis escritas, por si só, não assegura justiça ou governança eficaz, o que evidencia a importância do segundo conceito, o “fazhi”.

“Fazhi”, frequentemente traduzido como “Estado de Direito” ou “império da lei”, carrega na China um significado que vai além da simples aplicação imparcial das normas. O conceito incorpora a ideia de governança baseada na lei, mas adaptada às especificidades culturais e políticas do país. Diferentemente dos modelos ocidentais, nos quais o Estado de Direito está associado à limitação do poder estatal e à proteção de direitos individuais, na China “fazhi” enfatiza a busca pela harmonia entre governo e povo, com o Partido Comunista exercendo papel central na supervisão e implementação das leis.

O objetivo é equilibrar a autoridade estatal e os direitos dos cidadãos, sempre com foco no bem-estar coletivo e na estabilidade social. Mesmo com avanços recentes, como reformas que ampliam a proteção de direitos e promovem maior transparência, o “fazhi” chinês permanece ancorado em uma visão coletiva, na qual o interesse social se sobrepõe ao individual.

A relação entre “fa lu” e “fazhi” é, portanto, de complementaridade. Enquanto o primeiro representa o corpo de leis, o segundo é o princípio que orienta sua aplicação e legitima sua função social. Juntos, esses conceitos formam a base do sistema jurídico chinês, que alia a eficiência das normas escritas à flexibilidade necessária para responder às demandas de uma sociedade em constante transformação.

Compreender essa dinâmica é essencial para interpretar o direito chinês, que não se limita a reproduzir modelos estrangeiros, mas expressa de maneira própria a trajetória histórica e os valores do país. A coexistência de tradição e modernidade, evidenciada por “fa lu” e “fazhi”, molda um sistema jurídico que reflete a identidade única de uma das civilizações mais antigas e dinâmicas do mundo.

Assim, ao analisar os conceitos de “fa lu” e “fazhi”, torna-se evidente que o direito na China é um organismo vivo, em permanente evolução, capaz de absorver influências externas sem perder sua essência. Essa característica confere ao estudo do sistema jurídico chinês uma dimensão que vai além da análise técnica, transformando-o em uma oportunidade de compreender a alma de uma sociedade que, ao mesmo tempo em que preserva suas raízes, busca adaptar-se aos desafios contemporâneos. O direito chinês, por conseguinte, revela-se como um espelho das aspirações e dos dilemas de um país que continua a desempenhar papel central no cenário global, influenciando não apenas o curso da própria história, mas também o de outras nações.

* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai)

 

 

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