Rodrigo Gasparini Franco *
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A recente decisão do Tribunal de Turim de encaminhar à Corte Costituzionale a análise da constitucionalidade da Lei 74/2025, que alterou de maneira significativa a Lei 91/92 sobre cidadania italiana iure sanguinis, reacendeu um dos debates mais sensíveis do direito italiano contemporâneo. O centro da controvérsia está na inclusão do artigo 3-bis à Lei 91/92, que restringe de forma drástica o reconhecimento da cidadania italiana para descendentes de italianos nascidos no exterior e já titulares de outra cidadania, caso não tenham apresentado pedido administrativo ou judicial até 27 de março de 2025.
O caso analisado pelo Tribunal de Turim, envolvendo descendentes de italianos nascidos na Venezuela, trouxe à tona questões de legitimidade constitucional e de compatibilidade internacional que exigem reflexão aprofundada. O ponto de partida do juiz Fabrizio Alessandria é a natureza do direito à cidadania iure sanguinis no ordenamento italiano. A jurisprudência consolidada da Corte di Cassazione e da própria Corte Costituzionale reconhece que a cidadania por descendência é adquirida no nascimento, sendo um direito subjetivo perfeito, imprescritível e indisponível, que não depende de reconhecimento formal, mas apenas de prova da linha de transmissão. Assim, o reconhecimento judicial ou administrativo é meramente declaratório. Qualquer restrição retroativa ao exercício desse direito, como a imposta pela Lei 74/2025, não regula expectativas, mas atinge direitos já incorporados ao patrimônio jurídico dos indivíduos.
A Lei 74/2025 estabelece que “é considerado não ter jamais adquirido a cidadania italiana quem nasceu no exterior antes da entrada em vigor do presente artigo e é titular de outra cidadania”, salvo exceções restritas, promovendo uma revogação retroativa da cidadania para quem não apresentou pedido até a data-limite. O juiz Alessandria observa que tal mecanismo não encontra paralelo razoável nem mesmo em sistemas estrangeiros, como o alemão, que, ao reformar sua legislação, aplicou restrições apenas para nascimentos futuros, respeitando o princípio da irretroatividade e da proteção da confiança legítima.
A principal questão de legitimidade levantada refere-se à violação dos princípios constitucionais da igualdade e da razoabilidade, previstos nos artigos 2 e 3 da Constituição Italiana. A lei cria uma distinção arbitrária entre quem apresentou pedido antes de 27 de março de 2025 e quem, por motivos alheios à própria vontade — como dificuldades administrativas ou restrições históricas, especialmente para descendentes por linha materna antes de 1948 —, não o fez. Não há fundamento objetivo para tal discriminação, o que afronta o princípio da igualdade e da proteção da confiança legítima, ambos reiterados pela Corte Costituzionale. A retroatividade da restrição, sem mecanismo de direito intertemporal que permita adaptação à nova legislação, viola o princípio da segurança jurídica.
O Tribunal de Turim cita precedentes que reconhecem a existência de “direitos adquiridos” e a necessidade de respeito ao grau de consolidação das situações jurídicas, especialmente quando há jurisprudência pacífica reconhecendo determinado direito, como ocorre com a cidadania iure sanguinis. A ausência de uma “janela” razoável para adaptação agrava a arbitrariedade da medida.
Outro ponto central é a violação do artigo 22 da Constituição, que proíbe a privação da cidadania por motivos políticos, e do artigo 117, que impõe respeito aos compromissos internacionais. Embora o texto constitucional mencione “motivos políticos”, tratados internacionais proíbem a privação arbitrária da cidadania, conceito que abrange qualquer medida injustificada ou desproporcional. A revogação automática e retroativa, sem exame individualizado e sem possibilidade de defesa, configura, segundo a jurisprudência europeia, uma privação arbitrária.
No âmbito do direito da União Europeia, a restrição imposta repercute diretamente sobre o status de cidadão europeu, já que a cidadania italiana é pressuposto para a cidadania da União. O Tribunal de Turim invoca a jurisprudência europeia, que exige exame individualizado e proporcional, com possibilidade de defesa, para qualquer medida de perda de cidadania nacional. A lei italiana, ao prever perda automática e retroativa, sem salvaguardas, viola princípios fundamentais do direito europeu.
A análise comparada reforça a ilegitimidade da opção legislativa italiana. O exemplo da reforma da cidadania alemã demonstra que mudanças restritivas podem ser implementadas de forma prospectiva, respeitando direitos já adquiridos e oferecendo mecanismos de transição razoáveis. A ausência de previsão semelhante na Lei 74/2025 evidencia o caráter excepcional da medida.
A expectativa é que a Corte Costituzionale, ao julgar a questão, reafirme a centralidade dos direitos fundamentais e da proteção dos direitos adquiridos, promovendo uma interpretação que harmonize a necessidade de atualização legislativa com o respeito à dignidade e à segurança jurídica dos cidadãos, em sintonia com o espírito generoso e rigoroso da Constituição italiana.
In bocca al lupo!
* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai)