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Carlos de Assumpção: A voz que o racismo não cala

André Luiz da Silva *
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No dia 3 de julho, celebramos o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial. A data nos remete a um marco histórico: a sanção da Lei Afonso Arinos (Lei 1.390/1951), a primeira legislação antirracista do país. Essa lei nasceu da indignação diante do episódio de segregação vivido pela antropóloga e multiartista norte-americana Katherine Dunham, impedida de se hospedar em um hotel de São Paulo, em 1950. Foi uma resposta oficial ao brutal racismo, ainda que tardia.

Em Ribeirão Preto, essa data poderia ter passado despercebida — não fosse a realização de uma emocionante sessão solene na Câmara Municipal, onde o escritor Carlos de Assumpção recebeu o título de Cidadão Ribeirãopretano. Tive a honra de participar da solenidade, testemunhar o encontro de diferentes gerações de militantes do movimento negro e parabenizar a vereadora Duda Hidalgo pela propositura que foi aprovada por unanimidade, um ato de justiça histórica. Tornar filho adotivo de nossa cidade alguém que há muito já a frequenta com generosidade e talento, seja em eventos como o Sarau Preto (hoje Sarau Odilon), seja em tantos outros momentos culturais, comrelevantes contribuições é motivo de orgulho.

Carlos de Assumpção, nascido em Tietê (SP), em 23 de maio de 1927, é residente de Franca, onde se formou em Letras e Direito. Aos 98 anos, continua a ser uma das vozes mais potentes da literatura afro-brasileira. Em 2024, recebeu o Colar de Honra ao Mérito Legislativo, a mais alta honraria concedida pelo Parlamento Paulista — mais um título entre tantos outros: Personalidade Negra no 70º aniversário da Abolição (pela Associação Cultural do Negro), Personalidade do Ano em Franca, e doutor honoris causa pela UNESP e pela UFRJ. Além disso, é membro da Academia Francana de Letras.

Sua presença foi marcante na 23ª Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto (FIL), durante o evento “Recital, RAP e Tal: A atemporalidade da poesia”, onde dividiu o palco com o rapper, ator, escritor e cineasta MV Bill, demonstrando que sua arte atravessa gerações e linguagens. Também conquistou novos adeptos durante a apresentação do Sarau Protesto.

A poesia de Carlos é militante, engajada, visceral. Fala de pássaros no beiral de sua casa com a mesma força com que denuncia o racismo estrutural que permeia as relações sociais. Em sua poesia “Irmão de Todo Mundo”, está seu cartão de visita:“Eu sou Carlos de Assumpção / Sou irmão de todo mundo / Todo mundo é meu irmão (…) / Mas o racista não / Racista não é meu irmão.”

Seu poema “Eclipse” inspirou a música homônima do cantor Péricles, e sua obra “Protesto”, com a qual venceu, em 1982, o Concurso de Poesia Falada, é considerada um divisor de águas na literatura negra brasileira. Traduzido para o inglês, francês e alemão, o poema ecoa como grito coletivo:“Mesmo que voltem as costas / Às minhas palavras de fogo / Não pararei de gritar / Não pararei / Não pararei de gritar (…) Eu quero o sol que é de todos / Quero a vida que é de todos / Ou alcanço tudo o que eu quero / Ou gritarei a noite inteira / Como gritam os vulcões / Como gritam os vendavais / Como grita o mar. E nem a morte terá força / Para me fazer calar.”

Acredito que muitas pessoas compartilham da mesma sensação que me toma sempre que encontro Carlos de Assumpção. Há algo em seu olhar, em seus gestos e em cada palavra que pronuncia que desperta uma conexão ancestral profunda. No início, o silêncio me domina — um silêncio de reverência. Depois, me junto ao canto, à fala, ao gesto. E sempre saio dali transformado, inspirado a continuar, com humildade e coragem, o legado que ele nos confia.

Carlos de Assumpção é mais que um poeta. É griô, cronista da dor e da resistência, testemunha incansável de um Brasil ainda ferido pelo racismo. Sua biografia e sua obra são patrimônio da nossa história. Celebrá-lo é reafirmar o compromisso com a memória, com a justiça e com a luta por um país verdadeiramente igualitário.

Na noite de 3 de julho, sua homenagem em Ribeirão Preto não foi apenas simbólica. Foi necessária. Foi urgente. Foi exemplo. Foi inspiração.

* Servidor municipal, advogado, escritor e radialista

 

 

 

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