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O flagelo do ópio e a transformação de Xangai 

Rodrigo Gasparini Franco *
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Na primeira metade do século XIX, a China enfrentou uma de suas maiores crises, marcada pela introdução do ópio pelos britânicos e pela transformação de cidades como Xangai em centros de degradação social e exploração estrangeira. O comércio de ópio, inicialmente promovido pela Companhia Britânica das Índias Orientais, representou uma estratégia para equilibrar a balança comercial com a China, que exportava grandes quantidades de chá, seda e porcelana para a Europa. Produzido na Índia, então colônia britânica, o ópio começou a ser contrabandeado em larga escala para a China, causando uma epidemia de dependência química que devastou a sociedade chinesa. Em 1839, o imperador Daoguang tentou proibir o comércio da droga, mas a resistência britânica deflagrou a Primeira Guerra do Ópio (1839-1842), que culminou com a derrota da China e a assinatura do Tratado de Nanquim.

O Tratado de Nanquim inaugurou uma série de acordos desiguais que abriram os portos chineses ao comércio estrangeiro e cederam Hong Kong ao Reino Unido. Xangai, até então um pequeno porto pesqueiro, foi transformada em um dos principais “portos do tratado”, tornando-se um centro de comércio internacional e de influência ocidental. A cidade foi dividida em concessões estrangeiras, como a Concessão Internacional, controlada por britânicos e americanos, e a Concessão Francesa. Nessas áreas, as leis chinesas não vigoravam, e os estrangeiros gozavam de privilégios legais e econômicos. Essa fragmentação administrativa criou um ambiente de desigualdade e exploração, onde os chineses eram frequentemente tratados como cidadãos de segunda classe em sua própria terra.

A transformação de Xangai foi acompanhada por profundas mudanças sociais. O Bund, área ao longo do rio Huangpu, tornou-se o coração financeiro da cidade, com edifícios imponentes em estilo europeu abrigando bancos, empresas comerciais e clubes exclusivos. Paralelamente, a cidade testemunhou um aumento exponencial no número de bordéis e fumeries de ópio, especialmente na Concessão Internacional. Na década de 1920, Xangai já era conhecida como a “Cidade do Pecado”, com mais de 1.500 bordéis registrados e uma população devastada pelo vício em ópio. A prostituição, o jogo e o crime organizado prosperaram em um ambiente de permissividade e corrupção, alimentados pela fragmentação legal das concessões.

A introdução do ópio e a subsequente guerra impactaram profundamente o sistema jurídico chinês. Antes da Primeira Guerra do Ópio, a legislação chinesa era baseada em um sistema confucionista que enfatizava a moralidade e a harmonia social, com leis rígidas contra o tráfico de drogas. No entanto, a derrota na guerra e a imposição dos tratados desiguais enfraqueceram a soberania legal da China. Nas concessões estrangeiras, os cidadãos ocidentais estavam sujeitos às leis de seus próprios países, enquanto os chineses eram frequentemente deixados sem proteção legal. Essa perda de controle sobre o sistema jurídico foi um dos fatores que contribuíram para a instabilidade social e política que marcou o final da dinastia Qing.

O impacto desse período é retratado de forma poderosa no filme “A Guerra do Ópio” (1997), dirigido pelo aclamado cineasta Xie Jin. O filme narra os eventos que levaram à Primeira Guerra do Ópio, destacando a resistência do comissário Lin Zexu, que tentou reprimir o comércio da droga. A obra é uma crítica contundente ao imperialismo ocidental e um retrato da luta da China para preservar sua soberania diante da exploração estrangeira. A atuação de Lin Zexu no filme simboliza a resistência moral e política de um país que, apesar de suas derrotas, buscava proteger seu povo e sua cultura.

O legado desse período permanece visível em Xangai. O Bund ainda é um dos cartões-postais da cidade, com seus edifícios históricos abrigando hotéis de luxo e escritórios de empresas multinacionais. A antiga Concessão Francesa, com suas ruas arborizadas e arquitetura colonial, é um destino turístico popular. Contudo, a história de Xangai durante o século XIX é um lembrete doloroso dos efeitos do imperialismo e da exploração colonial. A introdução do ópio pelos britânicos não apenas devastou a sociedade chinesa, mas também alterou permanentemente o tecido social, cultural e jurídico do país. A transformação de Xangai em um centro de comércio e decadência representou um dos capítulos mais sombrios do “Século de Humilhação” da China, cujas consequências continuaram a moldar a história do país muito depois do fim da era colonial.

* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai) 

 

  

 

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