André Luiz da Silva *
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Sexta-feira, 16 de maio de 2025. No auditório do Centro Empresarial da Confederação Nacional do Comércio (CNC), em Brasília, acontecia o seminário “Gestão Pública – Prevenção ao Assédio e à Discriminação”, promovido pela Advocacia-Geral da União e pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República. O evento reunia autoridades e especialistas para discutir medidas de combate a práticas discriminatórias na administração pública. Um cenário que deveria simbolizar compromisso e avanço se tornou palco de mais um episódio de racismo institucional.
A ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral, Vera Lúcia Santana Araújo, chegou com antecedência, como orientado. Identificou-se. Apresentou a carteira funcional. Em vão. Barrada. Ignorada. Ofendida. Os olhos das atendentes não conseguiam enxergar a ministra. Eles só viam a cor da sua pele. Vera não era ali uma autoridade, nem uma palestrante. Era, para eles, apenas uma intrusa. Um corpo negro fora de lugar.
O mais cruel é o cenário: Na semana em que a história registrava os 137 anos da libertação dos escravizados, uma mulher negra impedida de acessar um evento sobre discriminação. O paradoxo não é apenas simbólico — ele é estruturante. Um edifício particular que abriga órgãos públicos, ocupado por terceirizados que, por má formação ou por deformação social, não concebem que uma mulher negra ocupe um espaço de fala, de protagonismo. E para reforçar a exclusão, chamam um segurança — também negro — que, a serviço do sistema, repete o papel histórico e trágico do “capitão do mato”: aquele que vigia, que contém, que restringe seus iguais.
Vera Lúcia, após insistência, conseguiu entrar. Falou. Brilhou. Mas as palavras dela — e as cicatrizes que sua trajetória carrega — pesam mais que qualquer currículo lido em voz alta. Porque não foi a primeira vez. Porque continua acontecendo. Porque o Brasil insiste em não enxergar o óbvio: o racismo não é exceção, é rotina.
A dor da ministra não está apenas no episódio. Está no acúmulo. Está na memória. Está na repetição de olhares que julgam, de portas que se fecham, de convites que se anulam ao primeiro contato visual. Está no fato de que, mesmo sendo referência nacional e internacional em direitos humanos, mesmo integrando órgãos como a OAB, CNBB, Instituto dos Advogados Brasileiros, mesmo com vasta produção acadêmica e décadas de atuação na defesa da democracia e da equidade, ela ainda é reduzida à cor da pele que carrega.
O racismo brasileiro não precisa de palavras ofensivas — ele se sustenta por gestos silenciosos, protocolos viciados, estruturas sociais que se fingem neutras. Ele se esconde em recepções, em vigilâncias, em perguntas disfarçadas de surpresa.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, apenas 14,25% dos juízes no país se autodeclaram negros ou negras. E não é por falta de competência ou talento. É por falta de acesso. Por excesso de barreiras. Por portas que se abrem apenas para os mesmos de sempre.
E quando alguém ousa romper esse cerco, o sistema reage. Viola. Humilha. Como fez com Vera. Como faz com tantas outras Veras anônimas que, diariamente, são empurradas para os fundos, para o silêncio, para a invisibilidade. Mas chega.
Não é mais tempo de notas de repúdio sem consequência. Nem de seminários que discutem o racismo ao mesmo tempo em que o praticam. É tempo de ação.
Que essa crônica não seja apenas lida, mas sentida. Que não seja apenas compartilhada, mas transformadora.
Você, leitor, leitora, não pode ser neutro. Quem é neutro diante da injustiça, opta pelo lado do opressor. É preciso tomar posição, levantar-se, somar-se ao movimento antirracista. Porque o silêncio é cúmplice. Porque não basta não ser racista — é urgente ser antirracista.
Vera Lúcia não precisa de nossas lágrimas. Precisa de nossa indignação. E, sobretudo, da nossa luta.
* Servidor municipal, advogado, escritor e radialista