Lucius de Mello *
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Na homenagem que faz a Sebastião Salgado em sua rede social, a prefeita de Paris Anne Hidalgo escreve: “Salgado era um apaixonado por Paris. Ele amava esta cidade intensamente. E era todas as manhãs, ao longo do Canal Saint-Martin, que ele a respirava. Esta cidade era sua”. O Institut de France e a Académie des Beaux-Arts, da qual Salgado era membro desde 2016, também enaltecem a importância do fotógrafo brasileiro publicando uma foto na qual ele traja o elegante fardão da instituição.
Sebastião Salgado vivia com a família num apartamento, perto da Place de la Bastille, cercado por seu acervo composto por 500 mil imagens. A vinte minutos dali, na Rue de l’Arcade, 17 — no tradicional Hotel Bedford —, D. Pedro II viveu os seus últimos dias de vida. Era 1891 e fotografias daquela época registraram o pomposo cortejo fúnebre e as honrarias de chefe de Estado que a capital francesa prestou ao, então, imperador deposto do Brasil.
A Paris que hoje se emociona com a morte de Salgado, obviamente, não é a mesma que se despediu de D. Pedro II. São dois momentos distintos separados por 134 anos de história. Porém, esses dois brasileiros têm muito mais em comum do que os anos que viveram na cidade Luz e o amor que sentiram por ela.
Para ambos, a cidade de Baudelaire guardava a chave da liberdade, do autoconhecimento, da ressignificação pessoal, de uma vida nova. Perseguidos pelo regime militar, Sebastião e a esposa Lélia Wanick Salgado exilaram-se em Paris em 1969. Na terra das revoluções, ele aprendeu que um clique poderia transformar tudo ao redor. D. Pedro II também viveu exilado às margens do rio Sena. Chegou em 1890, meses depois da Proclamação da República. Durante pouco mais de um ano, se dedicou à leitura e atividades culturais até sua morte em 5 de dezembro de 1891. Apesar dessas coincidências, sem dúvida, a fotografia é a maior afinidade que podemos encontrar entre Pedro e Sebastião.
O interesse do imperador pela fotografia surgiu nos trópicos quase simultaneamente à invenção do daguerreótipo, primeiro processo fotográfico a ser anunciado e comercializado para o público em geral, inventado por Louis Daguerre. Menos de um ano após o anúncio oficial da descoberta, em agosto de 1839, ele adquiriu sua própria câmera em março de 1840. Foi apresentado ao invento pelo abade francês Louis Compte, no Rio de Janeiro, à época em que a cidade se tornava o epicentro da fotografia no Brasil. Pedro II foi retratado por diversos fotógrafos, incluindo nomes como Marc Ferrez e Joaquim Insley Pacheco.
Entre 1871 e 1888 o último imperador do Brasil visitou os Estados Unidos, o Oriente Médio e passou por toda a Europa. Ao todo, foram três anos e sete meses inteiros viajando ao redor do mundo, que lhe renderam um valioso acervo fotográfico. Ele sonhava usar as fotografias para instruir o seu povo. Até a primeira selfie brasileira é atribuída a D. Pedro II. Segundo historiadores, ele teria realizado esse autorretrato de maneira engenhosa, posicionando sua câmera fotográfica em uma mesa e usando uma corda amarrada a ela para ativar o dispositivo e tirar a foto. Pedro II compartilhou o segredo desse feito em uma carta, explicando que a corda passava por dentro de suas roupas e que ele a puxava com a mão escondida sob o paletó. Método artesanal que Sebastião Salgado só conheceu nos livros de história da fotografia.
Ele se descobriu fotógrafo na segunda metade do século passado em Paris. Começou a carreira na África com a câmera emprestada de sua esposa. Nos últimos anos usava equipamentos de alta tecnologia nos trabalhos que realizou em mais de 120 países. Fotografias que estão publicadas em doze livros. Entre eles, Serra Pelada (1999), Êxodos (2000) e Gênesis (2013). Salgado é referência global na fotografia documental, reconhecido por suas imagens que abordam temas comunitários, ambientais e históricos de grande impacto. Muitas vezes com o objetivo de denunciar injustiças e problemas sociais.
Um poder político e transformador. Será que D. Pedro II imaginou a força que a fotografia teria ao testemunhar o seu nascimento de forma tão rudimentar? Recuperar o imperador visionário — ou nem tanto — considerado também uma figura humanista, conhecida por seu interesse na educação, cultura, ciência, filosofia, além de sua fugaz passagem por Paris e sua paixão pela recémcriada fotografia, mais do que realçar as afinidades entre o monarca e Sebastião Salgado, se pretende lembrar que é preciso coroar esse gênio nacional, um dos herdeiros — se trono houver — do Império Universal da Fotografia.
* Doutor em Letras pela USP e Sorbonne Université – Paris. Autor da tese A Bíblia segundo Balzac: Deus, o Diabo e os heróis bíblicos em A Comédia Humana. Jornalista, escritor, finalista do Prêmio Jabuti em 2003